A semana de 22

Denise Mattar fala sobre Anita Malfatti e o pioneirismo da arte moderna no Brasil

Por Gabriela - Em 23/06/2021 às 5:00 PM

Em comemoração ao Centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, a edição da Revista INSIDER da última semana deu início a uma série especial sobre o tema. Neste primeiro momento, Denise Mattar, importante e respeitada curadora de artes plásticas do Brasil, fala sobre Anita Malfatti, uma das protagonistas desse tão importante acontecimento que marcou o rompimento com o tradicionalismo cultural e mostrou novas formas de pensar. Confira:

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Denise Mattar – Foto: Ares Soares

A Semana de 22 começou na verdade em 1917, tendo como protagonista a jovem Anita Malfatti. Vamos lembrar a história desse momento, que pode ser considerado um marco do modernismo brasileiro. Annita Catharina Malfatti nasceu em São Paulo em 1889. Era filha do engenheiro italiano Samuel Malfatti e Eleonora Elizabeth Krug, norte-americana descendente de alemães. Em 1910 foi estudar na Europa, e por ter parentes na Alemanha, Anita não viajou para a França, como era o usual na época. Escrevendo sobre esse período ela disse: “quando cheguei à Europa, vi pela primeira vez a pintura. Quando visitei os museus fiquei tonta. Um belo dia fui com uma colega ver uma grande exposição de pintura moderna. Eram quadros grandes. Havia emprego de quilos de tinta e de todas as cores. Um jogo formidável. Uma confusão, um arrebatamento, cada acidente de forma pintado com todas as cores. O artista não havia tomado tempo para misturar as cores, o que para mim foi uma revelação e minha primeira descoberta. Pensei, o artista está certo. A luz do sol é composta de três cores primárias e quatro derivadas. Os objetos se acusam só quando saem da sombra, isto é, quando envolvidos na luz. Tudo é resultado da luz que os acusa, participando de todas as cores. Comecei a ver tudo acusado por todas as cores. Nada nesse mundo é incolor ou sem luz. Procurei o homem de todas as cores, Lovis Corinth, e dentro de uma semana comecei a trabalhar na aula desse professor. Comprei incontinente uma porção de tintas, e a festa começou”.

Retorno ao Brasil

Tropical Anita Malfatti 1917

Tropical – Anita Malfatti 1917

Com a ameaça da guerra na Europa, Anita voltou para o Brasil e fez sua primeira exposição individual em uma sala da loja Casa Mappin Stores, sem nenhuma repercussão. Nela apresentou obras como A Floresta, Tréseburg 1 e Tréburg 2. Em 1915 foi para Nova York completar seus estudos e ingressou na Art Students League de Nova York, também conhecida como Independent School of Art. Um de seus professores era Homer Boss (1882–1956) que organizava excursões à ilha de Monhegan, uma espécie de residência artística. Lá, sob orientação de Boss, pintou algumas das mais importantes obras de sua vida. Como O Farol e O Barco, ambas na Coleção do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Sobre o local, Malfatti relatou: “(…) achei a escola que tanto desejava encontrar na vida. Sempre pintávamos ao ar livre, no meio do vento, envoltos em neblina, no sol, na chuvarada, sem poder perceber se meio metro adiante havia algum despenhadeiro terrível. Trabalhávamos nessa ilha quase inacessível, rodeada de penhascos (…). Eu estava em pleno idílio pictórico. Vivia calma e feliz em meu trabalho”. Anita voltou ao Brasil, exultante com seu trabalho. Conheceu o jovem Di Cavalcanti e, incentivada por ele, preparou uma exposição na qual reuniu obras de tendência expressionista, entre as quais figuravam “A Estudante” (MASP), “O Homem Amarelo” (IEB-USP) e “A Mulher dos Cabelos Verdes” (Coleção Airton Queiroz – Fortaleza). Ao lado de seu trabalho mostrou algumas obras de seus colegas americanos. A mostra foi muito visitada por um grupo de amigos escritores, que ensaiavam a modernidade na poesia: Oswald de Andrade, Mário de Andrade e Menotti del Picchia.

Artigo Monteiro Lobato

No dia 20 de dezembro de 1917, Monteiro Lobato publicou no jornal O Estado de S. Paulo um artigo mordaz com o título “A Propósito da Exposição Malfatti”. Nele, Lobato, ainda que ressaltando as qualidades da artista, caracteriza a arte moderna como algo próximo à caricatura. Aqui segue um pequeno trecho de um artigo que é bem maior: ”(…) Essa artista possui talento vigoroso, fora do comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida para a má direção, se notam tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se de qualquer daqueles quadrinhos como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva, em que alto grau possui um sem-número de qualidades inatas e adquiridas das mais fecundas para construir uma sólida individualidade artística. Entretanto, seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios dum impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura. Sejam sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de ouros tantos ramos da arte caricatural. Caricatura da cor, caricatura da forma – caricatura que não visa, como a primitiva, ressaltar uma ideia cômica, mas sim desnortear, aparvalhar o espectador (…)”.

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Anita Malfatti – O barco 1915

Réplica de Oswald de Andrade

Oswald de Andrade não deixou passar a crítica e fez a seguinte réplica, publicada originalmente no Jornal do Commércio em 11 de janeiro de 1918: “Possuidora de uma alta consciência do que faz, levada por um notável instinto para a apaixonada eleição dos seus assuntos e da sua maneira, a vibrante artista não temeu levantar com os seus cinquenta trabalhos as mais irritadas opiniões e as mais contrariantes hostilidades. Era natural que elas surgissem no acanhamento da nossa vida artística. A impressão inicial que produzem os seus quadros é de originalidade e de diferente visão. As suas telas chocam o preconceito fotográfico que geralmente se leva no espírito para as nossas exposições de pintura. A sua arte é a negação da cópia, a ojeriza da oleografia”.

A crítica de Monteiro Lobato ecoou por muitos anos, mas, observemos que Lobato nunca deixou de apoiar os jovens modernistas, muitos dos quais publicou por sua editora, a Revista do Brasil. E, coerente com sua opinião de que Anita era uma grande artista, Lobato chamou-a para ilustrar a capa dos livros ¨O Homem e a morte¨, de Menotti Del Picchia e ¨Os condenados¨, de Oswald de Andrade, ambos lançados por ele.

Anita continuou a pintar, voltou-se para temas mais nacionais, como Tropical (Pinacoteca SP). Foi a grande estrela da Semana 22, e era apoiada por Mário de Andrade (Coleção Hecilda e Sergio Fadel – RJ), do qual fez muitos retratos. Em 1923, recebeu a bolsa do Pensionato Artístico de São Paulo, indo para Paris. A Japonesa (MAM-Rio) é uma obra desse período.  Voltando a 1917, a crítica de Lobato à exposição de Anita foi um furacão que sacudiu São Paulo, levando os jovens intelectuais a cerrar fileiras em torno de Anita Malfatti. E foi assim que o nosso Modernismo deu os primeiros passos – que o levariam à Semana de 22.

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